Luis Bonilla-Molina é mais a regra do que a exceção. É um imigrante venezuelano com sete filhos, um professor aposentado que buscou em outros países um novo lar com condições de subsistência.
Mas há algo que o diferencia. O hoje professor visitante da Universidade Federal de Sergipe foi vice-ministro de Hugo Chávez (1954-2013), o pai da revolução que terminou em ditadura.
Apesar da saudade que tem do lar, Luis, 61, não deve voltar tão cedo. Ele não vê condições materiais de sobrevivência na Venezuela atual e tampouco se sente seguro para isso. “Há uma absoluta intolerância à dissidência” no madurismo, diz à reportagem.
Ele integra a Frente Democrática Popular, um grupo oposicionista ao regime de Nicolás Maduro que tampouco está alinhado à oposição majoritária de María Corina Machado e Edmundo González. Um dos líderes da Frente, Enrique Márquez, está desaparecido.
Nasci em Rubio, um povo na fronteira com a Colômbia, e sou professor. Um professor que se aposentou com uma pensão de US$ 20 mensais —e é impossível sobreviver e criar filhos assim. Sou pai de sete, e cinco dos meus filhos estão vivendo a tragédia da migração como eu.
Primeiro fui ao México em 2018 para um pós-doutorado com bolsa, depois fui ao Panamá para trabalhar por quatro anos como professor. Há um ano e meio sou professor visitante na Universidade Federal de Sergipe. Quando vi a vaga, corri. Depois olhei o mapa. Não fazia ideia de onde era Aracaju. Como a maior parte dos imigrantes, não tenho estabilidade em nenhum lugar, mas tive o privilégio de ter trabalho.
Quando Chávez surgiu, nos parecia representar as melhores vontades do povo. Decidimos apostar. Ocupei cargos no governo, acompanhei-o até com suas falhas, porque não, não foi um período perfeito. Dirigi o Centro Internacional Miranda, de onde fomos desalojados por fazer críticas, entre elas uma à hiperliderança de Chávez. Fui assessor do gabinete dele. E fui vice-ministro de Educação Universitária.
Romper foi uma tragédia pessoal. Conhecemos Maduro, ele é parte de uma geração que acreditava estar comprometida com um projeto de transformação política. Mas os acontecimentos de 2014 a 2019 nos fizeram entender que era impossível seguir apoiando ele.
Maduro foi progressivamente traindo o projeto que Chávez encarnou, fazendo de uma proposta de mudança radical na relação da população com o governo uma nova modalidade de neoliberalismo. Seu governo fala de soberania, mas está entregando o petróleo aos Estados Unidos em condições leoninas, quase neocoloniais, com a Chevron. E ainda assim segue dizendo que seu governo é anti-imperialista.
Com Maduro, não se tolerava a crítica. Quando começamos a fazê-las na esquerda, começaram as intervenções nos partidos políticos. Durante muito tempo esperamos uma retratação. Não houve.
Ele bloqueou qualquer possibilidade de candidatura que não fosse a da direita. A expressão da simpatia eleitoral por Edmundo González não expressa um giro à direita na população, mas sim um sentimento anti-Maduro. As pessoas que votaram por ele votaram por uma mudança o mais rápido possível.
Fui muito critico quando se apelou a qualquer excesso de uso da força antes de Maduro e hoje em dia. A política é diálogo, consenso. Os colectivos [milícias civis armadas pelo regime] não representam nenhum trabalho de esquerda, são anônimos encapuzados.
Nas eleições do ano passado, foi impossível votar. Disponibilizaram somente o consulado em Brasília para fazer o registro, que só abriu por poucos dias. Era preciso viajar de Sergipe até lá duas vezes, e o custo da passagem era muito alto para mim. Ir à Venezuela e voltar, então, era materialmente impossível. Por isso lhes pedimos que abrissem um prazo mais longo para que pudéssemos ir em ônibus. Também pedimos que habilitassem outros consulados. Nada disso ocorreu. [Apenas 69 mil imigrantes estavam registrados para votar em um universo de mais de 7,7 milhões deles; relatos como o de Luis ocorreram em vários países.]
Precisamos retomar a democracia. O erro começou com o Conselho Nacional Eleitoral, que não cumpriu com a sua tarefa de divulgar as atas eleitorais.
Quando uma organização da qual faço parte publicou um comunicado pedindo a divulgação das atas, uma alta autoridade me ligou, dizendo que por minha culpa a violência na Venezuela se multiplicaria. Eu quero voltar ao meu país, mas não posso pelas condições materiais da vida e agora pela absoluta intolerância, como mostra essa ameaça.
O que vemos hoje não são bons projetos em disputa. O que aconteceu no dia da posse de Maduro foi uma dupla traição: por um lado, o roubo da democracia pelo governo, e por outro o engano à população por parte da oposição que lidera María Corina Machado, que prometia que Edmundo González iria ao país, mesmo sendo impossível.
Por que María Corina está livre, mas Enrique Márquez está detido? Isso porque o governo teme qualquer narrativa que fuja ao que lhes resulta funcional, que é estar ao lado dos Estados Unidos.
O surgimento de uma terceira opção, progressista, mas despolarizada, é fundamental. Uma opção que defenda a soberania popular, seja contra o bloqueio, contra qualquer ataque militar à Venezuela, mas também que denuncie o desgoverno que houve com Maduro, especialmente a situação para a classe trabalhadora.
Hoje Maduro não vê condições e garantias para deixar o poder. E a oposição não soube construí-los. Lamentavelmente, parte da oposição vem defendendo uma tragédia, que é a possibilidade de invasão militar. O problema dos venezuelanos resolvem os venezuelanos.
É incrível que um governo que se reivindica socialista e de esquerda piore as condições da população.